“Eu procuro familiaridade com a Natureza -conhecer seus estados de espírito e maneiras de ser. A Natureza primitiva é a mais interessante para mim. Eu faço imensos sacrifícios para conhecer todos os fenômenos da primavera, por exemplo, pensando que eu tenho aqui o poema inteiro, e então, para meu desapontamento, eu ouço que é apenas uma cópia imperfeita a que possuo e li, que meus ancestrais rasgaram muitas das primeiras folhas e passagens mais grandiosas, e mutilaram-na em muitos lugares. Eu não gostaria de pensar que algum semideus tivesse vindo antes de mim e escolhido para si algumas das melhores estrelas. Eu quero conhecer um paraíso inteiro e uma Terra inteira. Todas as grandes árvores e animais selvagens, peixes e aves se foram.”
Henry Thoreau, 1846
Eu não poderia começar esse texto de outra forma, sem copiar o brilhante cientista e escritor Fernando Fernandez, que cita em seu livro “Poema Imperfeito” o poema de Henry Thoreau. Nascido em 1817, Thoreau passou grande parte da sua vida escrevendo sobre os problemas da sociedade e sobre seu amor pela natureza. Nessa época, o escritor já citava um mundo não-natural, já degradado pela ação do homem e sem animais, árvores e plantas que o compunham no passado. Se a natureza é um poema, o que temos dele é apenas uma cópia imperfeita, um livro com diversas páginas faltando. Embora esse padrão se repita em diversos ecossistemas, vamos falar nesse texto sobre o ambiente que, ainda hoje, é o mais biodiverso do planeta mas que, crescentemente, tem tido suas páginas arrancadas. As nossas florestas estão vazias.
Florestas tropicais, ou mais especificamente, ecossistemas que compõem o bioma floresta tropical e subtropical úmida, são, em teoria, os ambientes mais biodiversos do planeta. Quando pensamos em florestas, logo imaginamos imensas comunidades de aves, répteis, anfíbios, peixes, insetos e grandes mamíferos vivendo em harmonia, em locais intocados pelo homem. Entretanto, eu sugiro que você faça um exercício simples. Passe o dia na floresta mais próxima de sua casa e tente observar grandes animais silvestres. Se você não mora imerso na Amazônia, no Pantanal ou perto de grandes parques nacionais, sinto muito, mas você provavelmente não verá nada além de aves, insetos e um calango ocasional. Se tiver um pouco de sorte, quem sabe um mico ou um macaco-prego? Não é porque todos os animais fogem com a nossa presença mas, sim, pois já não existem grandes animais à nossa volta. E, mais uma vez, a culpa é nossa.
Não precisamos voltar 10 mil anos, observando a extinção da megafauna, para entender o processo de perda de biodiversidade que vivemos. Tão grave quanto a extinção, a extirpação vem afetando a fauna de todo país, com resultados devastadores a longo prazo. Também chamado de extinção local, esse processo é muitas vezes ignorado, o que cria uma cascata de novas perdas biológicas. Imagine um pequeno fragmento de floresta que possuía porcos-do-mato, mas eles foram caçados até seu desaparecimento. Sem esses animais, algumas plantas não serão mais dispersadas, o que comprometerá a floresta futuramente. Onças terão o número de presas disponíveis reduzido, o que também pode acarretar sua extinção local. Aves que se alimentam de carrapatos nesses animais poderão migrar para outras regiões, assim como vermes e ectoparasitas dos porcos também sumirão. O desaparecimento de um único componente da floresta poderá gerar um efeito cascata, que comprometerá toda a biodiversidade da área.
Primeiramente, vale ressaltar que nossa forma de conservação atual é pouco efetiva. Em sua obra prima “A Sexta Extinção”, a jornalista Elizabeth Kolbert conta sobre sua viagem à Reserva 1202, no coração da Amazônia brasileira. Essa reserva é apenas uma de um complexo gigantesco, que faz parte de um dos experimentos mais longos do mundo, denominado Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais, ou PDBFF. Com início nos anos 70, o projeto visa entender mecanismos responsáveis pela manutenção da biodiversidade em áreas de proteção, bem como sua eficiência. Os resultados foram alarmantes. Na época, a legislação brasileira vigente permitia que detentores de terras na Amazônia poderiam desmatar 50% da floresta em suas propriedades, deixando intacto o restante. Em teoria, isso permitiria uma preservação de toda biodiversidade local, mesmo que em uma área menor.
Após anos de pesquisa, a equipe do PDBFF constatou que, ao contrário do esperado, em média 50% da biodiversidade em cada reserva foi perdida. Quanto menor a reserva, maior era a perda percentual de biodiversidade, e os resultados pioravam se florestas secundárias eram levadas em conta. Reservas biológicas funcionam hoje, aos olhos de Elizabeth, como “ilhas em terra firme”, cujo isolamento e baixa diversidade genética contribuem para a perda de espécies a longo prazo. Enquanto grandes reservas podem preservar melhor as relações ecológicas originais, pequenas reservas, sem corredores ecológicos para migração de espécies entre uma reserva e outra, são extremamente ineficientes. E adivinhem como é a maioria das reservas atuais.
Em seu livo “O Mastodonte de Barriga Cheia”, Fernando Fernandez, que já mencionei anteriormente, cita uma outra pesquisa alarmante, realizada pelos cientistas Gerardo Ceballos e Paul Ehrlich, publicada em 2002 na Science. Eles mapearam as áreas de ocorrência, no século XIX, de 173 espécies de mamíferos no mundo, em sua maioria componentes da megafauna, e compararam com sua área de ocorrência atual. Os autores constataram que 72% das espécies se extinguiram em mais da metade de sua área de ocorrência original e, em média, cada espécie perdeu 68% de seu território. O queixada está extinto na Mata Atlântica nordestina, a anta está extinta na caatinga e a onça-pintada já não existe mais nos Estados Unidos. Pouco a pouco, esses organismos tomam o mesmo caminho da maior parte da megafauna americana, vítimas de 500 anos de caça e da destruição do habitat. Como diria Fernando, nossos bosques não têm mais vida.
O maior problema está nas interações que são perdidas ano a ano em ecossistemas de todo o mundo. Sabemos que muitos animais não existem sem floresta, mas muitas florestas também não existem sem animais. Um estudo realizado em matas ciliares da Tanzânia tentou comprovar o impacto do desaparecimento de aves para a manutenção de florestas. Para germinarem, muitas árvores necessitam que aves comam seus frutos, que passarão por seu trato gastrointestinal, deixando apenas a semente exposta, sendo também transportadas para outros locais. Após mais de 40 anos de estudo, os cientistas concluíram que, em áreas preservadas, o número de espécies de pássaros chega ao dobro, quando comparado com áreas degradadas. Em florestas densas, cerca de 70% das sementes encontradas tinham sido ingeridas por pássaros, o que permitia sua germinação. Em florestas ralas, danificadas pela ação do homem, apenas 3% das sementes haviam sido consumidas previamente por aves. Não existem florestas sem os pássaros e, nos últimos 50 anos, a população de aves decaiu mais de 30% em algumas regiões. Além do desmatamento, a defaunação é uma gigantesca ameaça para nossas árvores.
A América do Sul é o continente com maior número de árvores frutíferas com grandes sementes, que dependem sobretudo de grandes mamíferos para sua reprodução. Após o desaparecimento da megafauna do Pleistoceno, muitas plantas neotropicais, como o abacateiro e o pequizeiro, continuaram existindo graças ao ser humano, uma vez que seus dispersores originais foram extintos, como elefantes e preguiças-gigantes. Antas, primatas e cutias desempenham esse mesmo papel crucial para diversas árvores, que não reproduzem mais após seu desaparecimento. Por mais que isso seja um fato contraintuitivo, a caça e o tráfico de animais têm se tornado uma das maiores ameaças para nossas árvores.
Entretanto, nem tudo está perdido. Projetos de refaunação, que serão melhor explorados em um texto futuro, têm sido propostos por todo o Brasil, com o intuito de devolver às matas parte de sua diversidade original e de restabelecer relações ecológicas perdidas. Cutias foram devolvidas a diversas matas do Rio de Janeiro pela equipe de Fernando Fernandez e do Projeto REFAUNA, assim como bugios-ruivos (Alouatta guariba clamitans). Antas (Tapirus terrestris) já foram devolvidas ao Rio de Janeiro, cervos-do-pantanal (Blastocerus dichotomus) voltaram a novas áreas do Paraná e o mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) está presente de novo na Mata Atlântica. Quem diria que o mutum-do-nordeste (Pauxi mitu), extinto na natureza, voltaria a viver nas florestas do Alagoas? O Brasil é usado, muitas vezes, como um exemplo de destruição ambiental mas, também, como um dos países de ponta na luta pela preservação.
A Síndrome de Florestas Vazias ocorre hoje em todo o mundo. Nas primaveras silenciosas da América do Norte, nas gigantescas matas vazias na Europa e nas ilhas da Indonésia, que possuem mais aves engaioladas do que soltas, vemos a crescente destruição ambiental e a fragilidade dos ecossistemas terrestres. A onda de extinções causada pelo ser humano entre 60 e 10 mil anos atrás ainda não acabou, e as próximas vítimas já estão, lentamente, desaparecendo à nossa volta. Somente por meio do impedimento da caça de animais silvestres, da construção de corredores ecológicos e de projetos de devolução de vida para parques e reservas é que poderemos garantir a manutenção de florestas e savanas por todo o Brasil. Quem sabe no futuro conseguiremos nos orgulhar, não só de possuir a maior biodiversidade do planeta, como também por proporcionar sua verdadeira proteção. Animais não vivem sem florestas e florestas não vivem sem animais. E nós não vivemos sem nenhum deles!
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Referências
Projetos e ONGs
Muriqui Instituto de Biodiversidade
CRAX – Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre
Livros
A Sexta Extinção – Uma história não natural, por Elizabeth Kolbert
Os Mastodontes de Barriga Cheia e Outras Histórias – Crônicas de biologia e conservação da natureza, por Fernando Fernandez
Folha de Lótus, Escorregador de Mosquito – E outras 96 cônicas sobre comportamento dos seres vivos – Por Fernando Reinach
Textos
https://www.kickante.com.br/campanhas/instituto-conhecer-para-conservar/atualizacoes
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150918_bugios_tijuca_fauna_pai
https://borneoproject.org/updates/indonesias-forests-increasingly-empty-of-wildlife
https://oglobo.globo.com/sociedade/florestas-vazias-do-vietna-23596025
http://www.savebrasil.org.br/o-fenomeno-das-florestas-vazias/
Vídeo
Artigos
https://ppbio.inpa.gov.br/sites/default/files/Faria_L_F_de_Dissertacao_2017.pdf
https://www.pnas.org/content/114/30/E6089
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