Imagine uma grande savana, repleta de herbívoros pastando, equinos selvagens, macacos e aves. Grandes mamíferos semi-aquáticos dividem os rios com enormes crocodilianos, enquanto as áreas abertas abrigam grandes manadas de elefantes e grandes animais pescoçudos, que se alimentam de folhas de acácias. Felinos de grande porte caçam em bandos familiares e grandes migrações cortam todo o continente, seguindo as chuvas sazonais. Embora pareça um clássico cenário de um safári africano, estamos falando da América do Sul, há cerca de 20 mil anos. Ecossistemas complexos, recheados com animais gigantes, eram extremamente comuns em todos os continentes, com exceção da Antártida, até pouco mais de 40 mil anos atrás. O que aconteceu com essa fauna? Por que, de todos os locais do planeta, a África foi o lugar em que mais se preservou desde o Pleistoceno? E, afinal, a culpa foi nossa?
Para entender o desaparecimento dos grandes animais, devemos entender, primeiro, quem eles são e como era o mundo durante os últimos milhares de anos. Megafauna é um termo utilizado para se referir a quaisquer animais com mais de 40kg, segundo alguns autores, e com mais de 100kg, segundo outros. Para nosso texto, consideraremos o primeiro conceito, por abranger grande parte da megafauna extinta. Há cerca de 21 milhões de anos, um longo período de glaciações tornou o clima terrestre extremamente seco, o que promoveu a redução de florestas e o aparecimento de grandes savanas e pradarias por todo o mundo. A ampla disponibilidade de alimento e a pressão seletiva de grandes predadores permitiu uma rápida diversificação de grandes herbívoros, que consequentemente geraria a seleção de carnívoros cada vez maiores. Há 6 milhões de anos, a expansão do gelo na Antártida tornou o planeta ainda mais frio e seco, fazendo com que as pradarias fossem os maiores ecossistemas em terra firme.
Entretanto, o reinado da megafauna começaria a ruir há cerca de 3 milhões de anos. Desde o final do Mesozóico, a América do Sul vivia isolada do resto do mundo, possuindo animais e plantas totalmente endêmicos, como tatus e preguiças gigantes, tamanduás, grandes ungulados, marsupiais carnívoros e aves do terror. Mudanças geológicas durante o Plioceno, há 2,7 milhões de anos, conectaram a América do Norte à América do Sul, gerando o Grande Intercâmbio Interamericano, no qual diversas ondas de migração permitiram trocas faunísticas entre os continentes. A entrada em massa de herbívoros vindos do norte causou uma enorme pressão nas populações de ungulados sul-americanos, que aos poucos foram se extinguindo até restarem poucas espécies. Por outro lado, a chegada de onças e tigres-dentes-de-sabre eliminou a presença das grandes aves carnívoras e marsupiais predadores nos ecossistemas neotropicais.
Enquanto isso, um novo grupo de animais surgiu na África, que mudaria para sempre o curso da história do planeta: os hominíneos. Esses estranhos primatas que viviam em grandes grupos familiares começaram a criar ferramentas há cerca de 3,1 milhões de anos, o que rapidamente moldou a sua evolução. Em milhares de anos, nossos ancestrais transformaram-se, de coletores e carniceiros a caçadores ativos, que utilizavam tecnologias relativamente complexas para matar grandes animais. Rapidamente, o gênero Homo se espalhou por toda África e, no meio do Pleistoceno, já havia colonizado a Ásia e Europa. Nessa época, diversas espécies de girafídeos, camelídeos, elefantes e carnívoros foram extintos pela África e Ásia, provavelmente devido à expansão humana.
O final do Pleistoceno foi marcado por diversas mudanças no planeta. Há cerca de 130.000 anos, uma onda de extinções ocorreu por todo o Hemisfério Norte, varrendo ecossistemas inteiros, devido ao rápido ciclo de avanços e retrações de geleiras pelos continentes. Setenta mil anos atrás, uma nova onda de extinções varreu a Ásia e Europa, mas, dessa vez, a culpa provavelmente foi nossa. Embora pareça impossível que a megafauna tenha sido extinta por primatas relativamente pequenos, a reprodução extremamente lenta desses animais e a preferência humana por caçar filhotes foi um fator determinante para o declínio dos mega-herbívoros, que provocou o declínio subsequente dos mega carnívoros. Após a extinção dos mamutes na Sibéria, há 10 mil anos, o solo foi sendo compactado e se tornou praticamente infértil, extinguindo os grandes ecossistemas no norte da Ásia.
Há cerca de 45 mil anos, a chegada dos seres humanos na Austrália coincide com o declínio da megafauna. Nessa grande área, diversos marsupiais do tamanho de rinocerontes conviviam com lagartos gigantes e com leões-marsupiais. Provavelmente, o uso do fogo para limpar pastagens e para atrair grandes herbívoros para áreas de caça foram o principal fator para o declínio tão acentuado desses animais tão estranhos.
A chegada do ser humano na América do Norte pelo Estreito de Bering, há 15 mil anos, comprometeu ainda mais as populações já fragilizadas pela retração de geleiras. Nessa época, grande parte da megafauna icônica da Europa, Ásia e Austrália já havia desaparecido completamente. As diversas ondas migratórias pelas Américas impactaram diferentes grupos de animais em épocas distintas, mas os mega-herbívoros (com mais de 1000 kg) foram os primeiros a desaparecer. Além disso, os humanos locais ainda roubavam caças provenientes dos ataques dos lobos-gigantes e tigres-dentes-de-sabre, o que também reduziu suas populações.
Na América do Sul, por sua vez, poucos dados apontam causas reais para a extinção da megafauna, mas, com certeza, o homem também possui certo nível de culpa. A maior parte dos grandes animais do Pleistoceno sumiu completamente do continente há cerca de 13 mil anos (que também coincide com a chegada humana), deixando enormes ecossistemas vazios em seu caminho. Estima-se que o Cerrado, que ainda hoje é a savana mais biodiversa do mundo, teria muito mais animais gigantes que a África, caso o ser humano não tivesse colonizado o continente.
Por fim, as colonizações do Caribe (6 mil anos atrás), das ilhas do pacífico (3 mil anos), de Madagascar (2 mil anos) e da Nova Zelândia (700 anos) dizimaram rapidamente a frágil megafauna insular do mundo. As últimas preguiças-gigantes do mundo morreram há 5 mil anos em uma pequena ilha do Caribe, mais de mil anos depois da invenção do vinho. Os últimos mamutes, por sua vez, morreram há 2650 anos, após a construção das Pirâmides do Egito mais famosas. Pouco a pouco, o mundo foi obtendo a formação faunística que conhecemos hoje, grande parte por nossa culpa.
Embora a África tenha sido o primeiro continente afetado pela ação humana, ele foi o menos atingido pela extinção em massa entre o Pleistoceno e o Holoceno. Parte disso se deve à sua geolocalização, uma vez que seus ciclos climáticos não foram tão alterados pelas glaciações. Além disso, a evolução dos hominíneos nesse local contribuiu para a maior resistência da megafauna ao homem, uma vez que evoluíram em conjunto por milhões de anos. As colonizações humanas em outros continentes foram extremamente rápidas, impedindo a seleção de características mais vantajosas que permitiriam as adaptações necessárias para a sua sobrevivência.
Nos últimos milênios, o ser humano extinguiu mais de 83% das espécies de mamíferos do nosso planeta, o que contribuiu para a destruição de redes tróficas complexas e ecossistemas inteiros. Em nossa presença, as espécies se extinguem cerca de mil vezes mais rápido do que ocorreria em condições normais, número este que só aumenta com a degradação ambiental, introdução de espécies exóticas e caça predatória, crescentes a cada ano pelo mundo.
A megafauna de nosso planeta está em risco. Temos extinguido nossa grande fauna há milhares de anos e, com ela, extinguimos também redes complexas de interações que ocasionam o desaparecimento de diversos outros organismos. Se não tomarmos cuidado, em poucos anos nossos elefantes, rinocerontes, tigres e leões terão seguido o caminho de seus antigos vizinhos. Precisamos ter a consciência de que o espaço em que vivemos já pertenceu a inúmeros organismos extintos e que, cabe a nós, impedir que esse erro continue se repetindo.
Referências
https://pedrojordano.net/2016/12/23/extant-megafauna-frugivores/
https://www.bbc.com/news/science-environment-41417633
Artigos
Science for a wilder Anthropocene: Synthesis and future directions for trophic rewilding research – Jens-Christian Svenning, Pil B. M. Pedersen, C. Josh Donlan, Rasmus Ejrnæs, Søren Faurby, Mauro Galetti, Dennis M. Hansen, Brody Sandel, Christopher J. Sandom, John W. Terborgh, and Frans W. M. Vera
Megafauna and ecosystem function from the Pleistocene to the Anthropocene
Yadvinder Malhi, Christopher E. Doughty, Mauro Galetti, Felisa A. Smith, Jens-Christian Svenning, and John W. Terborgh
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