Novo Marco do Saneamento Básico: nós queremos essa mudança?

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Em sessão remota de quarta-feira 24/06, o Senado aprovou o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4.162/2019). O projeto é de iniciativa do Executivo, foi aprovado em dezembro do ano passado na Câmara dos Deputados e agora segue para a sanção presidencial.

O que diz o Novo Marco do Saneamento Básico ?

O novo marco estabelece que os municípios e o Distrito Federal exercerão a titularidade dos serviços de saneamento básico e permite a criação de consórcios públicos e convênios de cooperação entre municípios vizinhos para a prestação do serviço.

Caberá aos municípios:

  • elaborar os planos de saneamento básico, através do estabelecimento de metas e indicadores de desempenho e mecanismos para aferir os resultados;
  • prestar diretamente ou conceder a prestação dos serviços regulando e fiscalizando;
  • estabelecer os direitos e os deveres dos usuários 

Os responsáveis pelo saneamento básico (municípios) poderão permitir a exploração do serviço por meio de concessões à iniciativa privada, ou seja, mediante licitações. Hoje, os contratos são estabelecidos diretamente, sem concorrência. O texto determina que os contratos deverão conter cláusulas essenciais, tendo como principais metas a expansão dos serviços, redução de perdas na distribuição de água tratada, qualidade na prestação dos serviços, eficiência e uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais, reúso de efluentes sanitários e aproveitamento de águas de chuva.

Além disso, a lei prevê metas audaciosas até 2033 com 99% da população com acesso à água potável e 90% da população com acesso ao tratamento e à coleta de esgoto. Diferentemente do que ocorre hoje em muitos estados, o projeto proíbe a celebração de contratos de programa, ou seja, sem concorrência e fechados diretamente entre os titulares dos serviços e as concessionárias. O texto determina a abertura de licitação, com a participação de empresas públicas e privadas, e acaba com o direito de preferência das companhias estaduais.

A Agência Nacional de Águas (ANA) ganhou novas atribuições devendo estabelecer normas de referência e regulamentação da prestação de serviços por meio de:

  • padrões de qualidade e eficiência na prestação, manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico;
  • regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico;
  • padronização dos contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico;
  • redução progressiva e controle da perda de água.

Com relação aos lixões a lei em vigor previa que os lixões deveriam acabar em 2014. Agora, a lei determina como prazo o dia 31 de dezembro de 2020, com exceção dos municípios com plano intermunicipal de resíduos sólidos ou plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, para os quais os prazos vão variar de agosto de 2021 a agosto de 2024, dependendo da localização e do tamanho do município.

Situação atual

A situação atual do saneamento básico no Brasil não é nada boa. A seguir estão alguns dados do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento:

  • Mais de 38% da água potável é perdida durante a distribuição ou não contabilizada.
  • Metade dos Prestadores de Serviço de abastecimento de água são órgãos públicos.
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Fonte: SNIS
  • Mais de 52% do esgoto gerado no Brasil não tem tratamento.
  • 78,8% das empresas que fornecem o esgotamento sanitário no Brasil são públicas.
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  • O Brasil ainda possui 13% da disposição final de resíduos encaminhada para o lixão.
  • Apenas 38,1% dos municípios brasileiros possuem coleta seletiva.

Prós e Contras do Novo Marco do Saneamento

Prós

Há algumas vantagens a serem levadas em consideração relativas à privatização do serviço de saneamento básico. Para que essas vantagens sejam reais é necessário haver contratos rígidos e bem elaborados.  

  • Maior continuidade: Tradicionalmente, o abastecimento de água e esgotamento têm sido a cargo do governo.  Municípios em todo o mundo têm controle sobre as operações de abastecimento de água.  O problema é que até o momento, no Brasil, o trabalho realizado tem sido ruim. Isso ocorre porque projetos de saneamento ficam dependentes da administração do atual governo. Como as obras levam tempo e investimento alto, com as trocas de governantes essas obras são deixadas de lado. Além disso, obras de abastecimento de água, esgotamento e melhoramento em destinação de resíduos não são percebidas muitas vezes pela população e, consequentemente, não angariam votos. A privatização resolveria esse problema. Segundo o Journal of Water Resources Planning and Management, em muitos casos, a privatização aumentou em 20% a cobertura do abastecimento de água, apesar de que a água é mais cara quando as empresas privadas a distribuem.
  • Maior investimento: o suprimento de água requer infraestrutura extensiva.  Barragens e tubulações devem ser construídas para fornecer água às pessoas a longas distâncias.  Além disso, empresas privadas teriam mais acesso à tecnologias mais eficientes para qualidade da água e tratamento de esgoto.  O próprio governo está sob uma dívida maciça. Muitos estados, como Minas Gerais, mal conseguem gerenciar suas finanças.  Esperar que eles invistam na infraestrutura que o abastecimento de água eficiente exige é simplesmente utópico.  Mas seriam as empresas privadas a solução?
  • Menor mortalidade e poluição: Metade do esgoto gerado no país não tem tratamento. Centenas e milhares de pessoas estão morrendo todos os dias por causa da ineficiência do saneamento.  A perda de água na canalização e doenças vinculadas à água são um problema grave.  As empresas privadas reduziriam desperdícios, já que implicariam diretamente nos seus lucros.
  • Concorrência: Havendo contrato por licitação, em teoria, as empresas escolhidas seriam aquelas com o melhor preço e melhor qualidade na prestação do serviço.
  • Homogeneidade: Com a Agência Nacional de Águas (ANA) criando padrões de qualidade e eficiência na prestação, manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico haverá uma padronização no fornecimento de água, esgotamento e resíduos no Brasil. Além disso, com as metas de universalização haverá mais pressão sobre as empresas privadas para a entrega do serviço.
  • Fim dos contratos de programa: Os contratos sem concorrência e fechados diretamente entre os titulares dos serviços e as concessionárias não seriam mais permitidos com o novo marco, reduzindo fraudes.

Contras

Perda de controle

  • Ao privatizar os sistemas de água e esgoto, o governo local abdica do controle sobre um recurso público vital, limitando a responsabilidade pública. Dessa forma, as empresas multinacionais de água, que atendem principalmente seus acionistas, limitam as informações e a transparência, restringindo o acesso de informação ao público.
  • Como o serviço de água é um monopólio natural que carece de um mercado verdadeiro, os consumidores só podem exercer escolha nas urnas mediante a eleição dos funcionários públicos que supervisionam sua utilidade. Porém a população não tem influência nas reuniões de uma empresa ou na escolha dela em uma licitação. O público carece de mecanismos para participar e tratar de suas demandas junto às empresas de serviços públicos e órgãos reguladores estaduais. Contratos complexos de longo prazo podem atar as mãos dos governos locais.
  • Os objetivos de uma empresa de água com fins lucrativos podem entrar em conflito com o interesse público. Como uma empresa de água tem objetivos diferentes dos de uma cidade, suas decisões serão tomadas por meio de um conjunto diferente de critérios, geralmente enfatizando a lucratividade.
empresa privada
  • É improvável que as empresas privadas de água adotem os mesmos critérios dos municípios ao decidir onde estender os serviços. Mesmo que a Agência Nacional das Águas (ANA) crie regulamentações, as obras dificilmente serão auditadas suficientemente. As empresas privadas estarão sempre propensas ao atendimento mais fácil e lucrativo. Não havendo uma fiscalização rígida, elas deixarão de atender comunidades de baixa renda, onde acontecem os maiores problemas de distribuição e ligações clandestinas que poderiam prejudicar os lucros.
  • Os governos locais podem usar o fornecimento de serviços de água e esgoto para promover um crescimento inteligente, enquanto as empresas de água geralmente fazem parceria com desenvolvedores privados para fornecer serviços a subúrbios em expansão.

Minando o direito humano à água

  • Como resultado de aumentos de preços, desconexões de serviços, investimentos inadequados e outras consequências econômicas prejudiciais, a privatização da água frequentemente interfere no direito humano à água.

Aumentos na taxa

  • Segundo a FWW (Food and Water Watch), o serviço público de abastecimento de água de propriedade privada custa 58% mais do que o serviço público de água. A Food & Water Watch compilou as taxas de água dos 500 maiores sistemas comunitários de água dos EUA e constatou que empresas privadas com fins lucrativos cobravam às famílias uma média de 501 dólares por ano por 227 metros cúbicos de água, sendo 185 dólares a mais do que o que os governos locais cobravam pelo mesmo volume.
  • Já no esgotamento, os serviços privados pertencentes a investidores normalmente cobram 63% a mais pelo serviço de esgoto do que os serviços públicos locais. A Food & Water Watch compilou as taxas de esgoto pesquisando dados de dezenas de estados dos EUA e descobriu que a privatização aumentou as taxas de esgoto em 7% na Virgínia Ocidental e em 154% no Texas.

Monopólio:

  • Em teoria, a concorrência levaria a contratos mais baratos, mas, na prática, os pesquisadores descobriram que o mercado de água “raramente é competitivo”. A única competição que pode existir é a competição pelo contrato, e há apenas algumas empresas privadas que tentam assumir os sistemas municipais de água. Uma vez que um contrato é concedido, a empresa vencedora goza de um monopólio. A falta de concorrência pode levar a lucros excessivos e à corrupção em operações privadas.
  • A privatização geralmente aumenta os custos. Os lucros corporativos, dividendos e impostos sobre a renda podem adicionar de 20 a 30% nos custos de operação e manutenção, e a falta de concorrência e pouca habilidade de negociação podem deixar os governos locais com contratos caros.
  • A operação pública geralmente economiza dinheiro. Em uma análise pela Food & Water Watch de 18 municípios dos Estados Unidos que encerraram seus contratos com empresas privadas constatou-se que a operação pública era em média 21% mais barata que a operação privada de serviços de água e esgoto.
  • Um problema muito comum no Brasil são as chamadas “licitações direcionadas”, onde o governo cria um contrato no qual apenas alguma empresa específica, de seu interesse, conseguiria ganhar a licitação. Empresas maiores de mineração e indústrias têm interesse direto em mananciais e fornecimento de água tratada.

Outros custos

  • As licitações de privatização podem ser caras de se implementar. O processo de privatização é complicado, caro e demorado. No total, o monitoramento e administração de contratos, a conversão da força de trabalho, o trabalho não planejado e o uso de equipamentos e instalações públicas podem aumentar o preço de um contrato em até 25%. Outras despesas ocultas, incluindo pedidos de alteração e excedentes de custos, podem aumentar ainda mais o preço do serviço privado.

A privatização pode piorar o serviço.

  • Há ampla evidência de que os pedidos em atraso de manutenção, desperdício de água, vazamentos de esgoto e serviços piores geralmente seguem a privatização. De fato, o fraco desempenho é a principal razão pela qual os governos locais revertem a decisão de privatizar e retomar a operação pública de serviços contratados anteriormente. Esse é o caso de Manaus, onde a concessionária Águas de Manaus disponibiliza o serviço para apenas 12,47% da cidade. As tarifas mais caras da Amazônia são outros elementos do problema. A empresa Aegea Saneamento e suas antecessoras (Suez, Solvi e Águas do Brasil) abandonaram as periferias da cidade e não quiseram se envolver com as comunidades rurais e ribeirinhas.
  • Operadores privados podem cortar custos e, quando tentam reduzi-los, as práticas que empregam podem resultar em pior qualidade do serviço. Eles podem usar materiais de construção de baixa qualidade, adiar a manutenção necessária ou reduzir o tamanho da força de trabalho, o que prejudica o atendimento ao cliente e retarda as respostas a emergências.

E então?

O texto do Novo Marco do Saneamento não é o ideal diante do atual cenário brasileiro. As prestadoras públicas possuem, sim, grandes problemas e o desenvolvimento delas dependeria exclusivamente de governos muitas vezes quebrados. Porém, a abertura para a privatização pode trazer problemas ainda mais complexos. De acordo com um editorial de 2004 de Gary H. Wolff no Journal of Water Resources Planning and Management, em todo o mundo, os maiores problemas hídricos ocorrem em locais onde o governo é muito fraco para prestar serviços adequados ou regular empresas privadas, o que sem dúvida é verdade.

De acordo com o artigo do Wall Street Journal, Atlanta privatizou seu serviço de água no final dos anos 90, mas teve que retomar o controle quatro anos depois devido à baixa qualidade da água e aos custos excessivos.  E houve um alvoroço público em Illinois em 2009, quando a maior empresa privada de água, a Illinois American Water Co., solicitou um aumento de 30% na taxa, que, segundo a mesma, era necessário para melhorias na infraestrutura.

A água é nosso direito fundamental e o acesso à água limpa está entre as necessidades humanas mais básicas. Será que não devemos pensar duas vezes antes entregar o controle dela na mão de empresas cujo único interesse é o lucro?

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Referências

  • Senado Federal – PL 4.162/2019
  • Trata Brasil
  • Journal of Water Resources Planning and Management
  • Wall Street Journal
  • SNIS – Sistema Nacional de Informaçoes sobre saneamento
  • Food & Water Watch

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