De todos os continentes do nosso planeta, a Antártida é, sem dúvida, o mais inóspito. Esse enorme deserto gelado recebe em média 200 mm de chuva por ano (a última chuva em algumas regiões ocorreu há mais de 2 milhões de anos). Com temperaturas que chegam a −94.7 °C e com meses de quase completa escuridão, é de se esperar que a vida terrestre nesse local seja apenas uma fração da encontrada em qualquer outro continente. Mas nem sempre foi assim. Durante parte da história da Terra, a Antártida foi o lar de uma enorme biodiversidade, que desapareceu rapidamente à medida que o continente congelou. Nos milhões de anos seguintes, um complexo ecossistema marinho se formou no entorno de seu gelo, criando uma fauna completamente única. Entretanto, após mais de 50 milhões de relativa estabilidade, uma nova extinção em massa ameaça o continente.
Descubra nessa mini-série de textos por que a Antártida deixou de ser verde (e por que ela está se tornando verde novamente!)
Em “A Teoria de Tudo que Está Vivo“, contamos de forma breve como diversos grupos de organismos surgiram e se espalharam pelo planeta. Após a quebra do supercontinente Pangea, durante a era Mesozoica, a região ao sul (denominada Gondwana) permaneceu junta por milhões de anos, tempo em que diversos animais e plantas se diversificaram. Por estar muito mais ao norte que hoje em dia, a temperatura média da Antártida não era tão diferente da de outras regiões da Gondwana e, por esse motivo, ela tinha uma fauna e uma flora semelhantes. Dados fósseis do período Jurássico (entre 200 e 145 milhões de anos atrás) mostram que essa região era extremamente biodiversa, com grandes dinossauros, aves, anfíbios e mamíferos vivendo em uma vasta floresta temperada.
No meio do período Cretáceo, há cerca de 100 milhões de anos, a África havia migrado para o norte, se desprendendo dos outros continentes da Gondwana. Progressivamente, a Antártida foi se aproximando da sua posição atual e, há cerca de 50 milhões de anos, atingiu a parte mais ao sul do planeta. Nesse momento, ela ainda estava muito próxima da América do Sul e conectada à Austrália. Essa conexão foi determinante para a fauna e a flora desses continentes, uma vez que diversos grupos de animais se originaram na América do Sul e migraram para a Austrália através da Antártida e vice-versa. Além de araucárias e quelônios gigantes, podemos destacar os marsupiais. Originados na América do Sul, colonizaram a Antártida e atingiram a Austrália, onde apresentam sua maior diversidade na atualidade.
Foi nesse período que o planeta atingiu suas maiores temperaturas da história, evento conhecido como Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno, no qual o planeta aqueceu mais de 6ºC em apenas 20 mil anos. Com a temperatura média de 23 °C (em contraste aos 14ºC atuais), enormes florestas se estendiam do Ártico até as porções mais austrais da Antártida. Além de palmeiras e samambaias gigantes, uma enorme diversidade de répteis, aves e mamíferos tomava conta desse continente massivo. Ainda maior que a Austrália, essa região possuía uma grande variedade de biomas, com montanhas cobertas de neve, florestas temperadas úmidas e florestas tropicais extremamente chuvosas, cercadas por um mosaico de planícies semi-áridas.
A fauna local também não era menos diversa que a dos continentes vizinhos. Marsupiais dividiam o ambiente com aves semelhantes a emas e com jabutis gigantes, que viviam nas porções mais quentes da região. Fósseis de bolas de fezes da área mostram a presença de besouros “rola-bosta”, que depositavam seus ovos no excremento de grandes herbívoros, como o Notiolofos e o Antarctodon, ungulados pastadores parente das Macrauchenias sul-americanas. Ossos isolados demonstram também a presença de Xenarthros no continente, grupo que surgiu na América do Sul e que inclui preguiças, tatus e tamanduás. Enormes pegadas de aves também indicam a existência de aves-do-terror (Phorusrhacidae) no continente, animais parentes das atuais seriemas que, por milhões de anos, foram os principais predadores na região Neotropical do planeta. Os pinguins, originários da Nova Zelândia, chegaram à costa da Antártida nessa época, e lá se diversificaram em dezenas de espécies.
Entretanto, toda essa biodiversidade teria um rápido fim. Há cerca de 36 milhões de anos, a temperatura do planeta havia caído cerca de 15ºC, o que resultou em menos regiões de florestas tropicais no continente, gradualmente substituídas por florestas temperadas, com destaque para as árvores do gênero Nothofagus, que ainda existem na América do Sul e na Austrália. Entretanto, nessa mesma época, a conexão que existia entre a Antártida e a Austrália se quebrou, isolando completamente o atual continente gelado. As correntes marítimas, que antes eram bloqueadas pela ligação com a Austrália, começaram a contornar o continente, tornando-se cada vez mais rápidas. A Corrente Circumpolar Antártica é, atualmente, a mais forte de todo o planeta, com um volume 10 vezes maior que o do Rio Amazonas e correndo a uma velocidade de mais de 40cm/s.
Além de puxar grandes volumes de água fria do fundo dos oceano, suas enormes força e velocidades impediram que correntes mais quentes atingissem o continente. Assim como uma ventoinha de uma geladeira, a Corrente Circumpolar Antártica roubava o calor da região, que foi congelando do centro para suas bordas. Quedas constantes de neve fizeram com que geleiras se formassem por todo o continente, algumas com quilômetros de profundidade. O surgimento do gelo na Antártida influenciou as dinâmicas climáticas de todo o planeta e retirou toneladas de água da atmosfera, o que reduziu a distribuição de florestas e criou as grandes savanas e planícies do planeta. Dados geológicos mostram que florestas foram substituídas por geleiras em algumas regiões em poucos milhares de anos, enquanto as porções litorâneas permaneceram mais preservadas. As últimas árvores do local morreram há cerca de 2 milhões de anos, durante uma era do gelo global. Era o fim do verde da Antártida. Atualmente, apenas duas espécies de angiospermas sobrevivem na porção norte da Península Antártica e em ilhas ao seu redor (Deschampsia antarctica e Colobanthus quitensis).
Entretanto, tudo isso está mudando e, embora a diversidade esteja aumentando em terra firme, um novo perigo se aproxima do continente. Na semana que vem, descubra como a Antártida está se tornando verde novamente, mas não só da forma que você imagina.
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A Teoria de Tudo que está Vivo – Parte I – Do gênesis ao apocalipse
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A Teoria de Tudo que está Vivo – Parte III – O Reinado dos Mamíferos
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Referências
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